Direito de Família na Mídia
Casar com vítima menor não livra estuprador da culpa
09/02/2006 Fonte: Revista Consultor JurídicoPor maioria de votos, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram que a união estável entre ofensor e vítima, em caso de estupro, não é suficiente para a extinção da punibilidade. A decisão foi tomada no julgamento de recurso contra a aplicação da pena a um homem que havia estuprado uma menor de, à época, nove anos.
A discussão girou em torno da equiparação da união estável ao casamento para fins de extinção da punibilidade, nos termos do artigo 107, VII, do Código Penal. O dispositivo já foi revogado pela lei 11.106/05.
Mas como a revogação criou uma situação menos favorável ao réu, deveria ser mantida, se fosse o caso, a aplicação da norma anterior, que tinha a seguinte redação: "art. 107: Extingue-se a punibilidade: (...) VII – pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código (...)".
O tema, inicialmente, seria julgado pela 1ª Turma do STF. Mas, em razão da relevância, a matéria foi enviada ao Pleno, onde começou a ser julgada em março do ano passado. Um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes suspendeu o julgamento.
No pedido, o réu, condenado a sete anos de reclusão pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso por crime de estupro contra menor de 14 anos, requereu a reforma da decisão. Na primeira instância ele havia sido absolvido.
O relator da matéria, ministro Marco Aurélio, acolheu o recurso. De acordo com suas fundamentações, haveria, por analogia, equiparação entre a união estável e o casamento no caso. O ministro entendeu, ainda, que deveria haver prudência e seria importante evitar a formalidade excessiva, em razão de ter o conceito de família sido alterado — não havendo, portanto, no Código Penal, vigente há 60 anos, a figura da união estável.
De acordo com o ministro, o que prevalece é a determinação da Constituição Federal (artigo 226, parágrafo 3º), segundo a qual a família é base da sociedade e está protegida pelo Estado. "Quanto ao confronto de valores, cumpre deliberar se o mais importante para o Estado é a preservação da família ou o remédio para a ‘ferida social’ causada pelo insensato intercurso sexual, dada a idade da jovem — situação não de todo surpreendente, visto que, nos dias atuais, a iniciação sexual começa visivelmente cada vez mais cedo", sustentou Marco Aurélio.
Ato repugnante
Nesta quinta-feira (9/2), ao trazer seu voto para o julgamento, o ministro Gilmar Mendes afirmou: "O que justifica o meu pedido de vista é a preocupação com a hipótese concreta em que ocorre a discussão dos presentes autos: uma menina de idade entre 9 e 12 anos, que mantém relações sexuais com seu tutor legal, então marido de sua tia, com quem ela vivia desde os 8 anos de idade".
Para Gilmar Mendes, antes de se discutir a equiparação entre a união estável e o casamento, é preciso debater se "a situação concreta apresentada no caso pode ser considerada união estável para fins do art. 226, §3º, da Constituição Federal de 1988. Ou seja, qual o bem da vida que juridicamente é protegido pela norma constitucional inserta neste dispositivo?"
O ministro considerou essencial destacar é o fato de se tratar de uma situação fática repugnante: uma criança, confiada a um tutor que, em flagrante abuso de sua autoridade, manteve com ela relações sexuais desde que esta tinha 9 anos de idade. Para Mendes, o fato de adolescente, depois de ter o filho, vir a juízo afirmar que vive maritalmente com o seu opressor, não pode ser considerado como hipótese típica de perdão, extinguindo a punibilidade.
"A união estável, que se equipara a casamento por força do art. 226, §3º, da Constituição Federal, é uma relação de convivência e afetividade em que homem e mulher de idade adulta, de forma livre e consciente, mantém com o intuito de constituírem família. Não se pode equiparar a situação dos autos a uma união estável, nem muito menos, a partir dela, reconhecer, na hipótese, um casamento, para fins de incidência do art. 107, VII, do Código Penal", disse o ministro.
Por sua vez, o ministro Carlos Brito, que acompanhou a divergência entendeu, no confronto entre os artigos 227 e 226 da Constituição da República, deve prevalecer o primeiro. "A proteção à criança e ao adolescente é absoluta prioridade", destacou. O ministro não escondeu o espanto ao ressalvar o fato de que a vítima do estupro, quando do acontecimento, sequer havia menstruado. Assim, Brito avaliou que, para ocorrer o casamento, homem e mulher devem ter consciência e estrutura para manifestarem suas vontades.
Depois de Brito, o relator pediu para se pronunciar. Fez questão de esclarecer que o "pano de fundo", o fato, é condenável. "Ninguém encampa a idéia do abuso, mas no meu voto eu dei conseqüências ao fato", explicou Marco Aurélio. "Temos uma realidade que não pode ficar em segundo plano. A vítima compõe uma família".
O ministro Celso de Mello acompanhou o relator. Para ele, a situação de fato, a da convivência pública, duradoura, é inequívoca. Nesse sentido, lembrou da atenção especial dispensada pela Constituição à família. Lembrou ainda que a lei civil — Código Civil, artigo 1551 — não desfaz o casamento, resultante de gravidez, em razão de idade.
O ministro Cezar Peluso, porém, reafirmou que, em razão da idade, a vítima é incapaz de consentir. E chegou a ponderar sobre a possibilidade da situação de convivência entre agressor e vítima configurarem uma ofensa à dignidade da pessoa humana. Sepúlveda Pertence acompanhou o relator. Ellen Gracie, a divergência iniciada por Joaquim Barbosa.
Ao final, Marco Aurélio levantou questão de ordem sobre o regime de cumprimento da pena. Entendeu que os sete anos deveriam ser apenas inicialmente em regime fechado. Como a progressão de regime em caso de crime hediondo está sob a análise do próprio Supremo, e deverá ser julgado na próxima semana, o Pleno entendeu por bem resolver a questão depois.
RE 418.376